Meias Verdades

Câmara Regional não
passa de grande blefe

DANIEL LIMA - 01/04/2003

 Trechos de matéria em 13 de março de 1997 do Diário do Grande ABC com o título "Câmara atrai investimentos, diz empresário":


O vice-presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) e diretor da Scania, Mauro Marcondes Machado, disse que a sintonia que passa a existir entre o governo do Estado e as sete prefeituras da região, com a instalação da Câmara Regional do ABC, é favorável para que se viabilize um plano visando atrair investimentos das montadoras de veículos. “A presença do governador Mário Covas, acompanhado de seus principais secretários, dos prefeitos e políticos da região, dos sindicalistas e do Fórum da Cidadania no lançamento da Câmara do ABC demonstra uma vontade política no sentido de recuperar a economia da região. A expectativa é de que teremos bons resultados”, comentou.


Machado afirmou, no entanto, que se o Grande ABC quiser atrair parte dos R$ 10 bilhões previstos para serem investidos pelas montadoras até o ano 2000, terá de dar incentivos fiscais e todas as vantagens possíveis.


Como exemplo de incentivo que poderia ser dado pelas prefeituras das cidades onde estão instaladas as indústrias automobilísticas, Machado citou a redução do IPTU. Ele sugeriu também a instalação de armazéns alfandegados, onde pudessem ser depositados componentes importados pelo setor automobilístico sem nenhum custo. 


 Trechos de matéria do Diário do Grande ABC de 20 de maio de 1997, “Carta defende o consenso para a região”:


A Câmara Regional do ABC aprovou ontem por unanimidade um documento que defende o consenso entre o governo do Estado, as sete prefeituras e a sociedade civil para o desenvolvimento econômico da região. Trata-se de uma carta de intenções inédita, com o objetivo de orientar o trabalho que está sendo desenvolvido pelos quatro grupos temáticos da Câmara Regional para elaborar um plano estratégico de desenvolvimento econômico e social sustentado para o Grande ABC.


A Carta da Câmara Regional do ABC, aprovada ontem, estabelece alguns consensos. Segundo o documento de cinco páginas e sete itens, o Grande ABC é uma região estratégica e como tal deve buscar fortalecer as atividades industriais, lutando pela permanência das empresas já instaladas e atraindo novas plantas industriais. O setor terciário (comércio) não poderá ser esquecido.


A carta lembra que a região não enfrenta os mesmos problemas de tradicionais centros econômicos da Europa, com indústrias fechando e empresas mudando de endereço. “Não só nossas cidades não expressam uma situação de esvaziamento, como vêm ocorrendo investimentos de monta no setor terciário”.


Em relação ao desemprego, o documento mostra que as montadoras de veículos ao alterar o perfil de suas fábricas, com o objetivo de alcançar mais produtividade, acarretam desemprego. “Mas não se trata de fechamento das unidades produtivas, que continuam a investir na região”, aponta.


O comunicado destaca a alta qualificação da mão-de-obra existente no Grande ABC, que possibilita aproveitar a estrutura já instalada para criar centros de excelência na prestação de serviços modernos, “demandados pelas indústrias nas fases anteriores e posteriores à produção”.


A carta assinala a disposição de criar formas de incentivo às micro e pequenas empresas e afirma que é preciso reunir esforços para estabelecer políticas de pesquisa e desenvolvimento, a fim de propiciar intercâmbio entre o setor produtivo e as faculdades e universidades do Grande ABC e da Capital. 


 Trechos do Diário do Grande ABC de 15 de julho de 1997, “Agora é ganhar ou ganhar, afirma Covas”:


O governador Mário Covas disse ontem, ao ser empossado como um dos 47 membros do Conselho Deliberativo da Câmara Regional do ABC, que a entidade “é um caminho sem volta”. “Hoje este caminho é irreversível. O percurso dessa construção foi feito. De forma que, agora, não tem nem como voltar atrás. Agora é ganhar ou ganhar”.


Para o governador, a Câmara é um fato extremamente significativo, que coloca a região na liderança do processo político: “O fato novamente faz da região um exemplo de comportamento de natureza política objetivando a adoção de medidas de natureza econômica, mas que nascem afinal de uma capacidade de articulação política”, salientou.


Ao ser questionado sobre qual é a saída para a região continuar crescendo, o governador respondeu: “Eu acho que a grande característica da região é o seu know-how, sua mão-de-obra especializada. Então, não dá para pensar no Grande ABC deteriorado no ponto de vista industrial”. 


 Trechos de matéria do Diário do Grande ABC de 15 de julho de 1997 com o título “Câmara passa agora para segunda fase”:


“Acabou a lua-de-mel”, disse ontem o coordenador do Fórum da Cidadania do Grande ABC, Marcos Gonçalves, ao comentar a segunda fase dos trabalhos da Câmara do ABC, que começa agora. Para ele, terá de haver consenso entre os diferentes interesses que se intercalam nas discussões da Câmara: as prefeituras querem aumentar a arrecadação; os empresários, reduzir a carga de impostos; os sindicalistas falam em redução da jornada de trabalho; e os parlamentares se dividem em disputas partidárias.


Fausto Cestari, diretor do Ciesp/Santo André, disse que a Câmara Regional saltou da fase de negociação de interesses. “A identificação das propostas foi perfeita, mas faltou a negociação”, diagnosticou Cestari, que aconselha o Poder Público a abrir mão de suas prerrogativas e, as corporações, de suas reivindicações isoladas. 


 Trechos de matéria no Diário do Grande ABC de 21 de setembro de 1997, “Sinergia vai mudar a imagem da região”:


É consenso entre publicitários e especialistas em marketing: o Grande ABC precisa apagar a memória do sindicalismo radical e das greves para vender a imagem da união dos seus municípios, da sua forte representatividade na economia brasileira e da transformação comportamental no ambiente de trabalho proporcionado pela globalização. A palavra que resume tudo é sinergia.


Para Silvio Minciotti, professor de Marketing do Imes (Instituto Municipal de Ensino Superior), em São Caetano, e da USP (Universidade de São Paulo), o entrosamento será conquistado com o tempo. Ana Cláudia Govatto, da Octopus Comunicação, vê a necessidade de uma ampla pesquisa de opinião para que o Grande ABC defina a imagem que pretende vender.


Silvio Minciotti diz que agência tem de ser uma entidade supramunicipal que venda o peixe da “sinergia” entre os sete municípios. “Precisamos vender a imagem do conjunto, da união”, afirmou. A publicitária (Govatto) vê como pontos positivos para vender a imagem da região uma série de fatores “O Grande ABC é a terceira região do país em consumo. Temos mão-de-obra qualificada, infra-estrutura, além de áreas privilegiadas para turismo ecológico”, destacou.


“Nenhum shopping, dos vários que estão instalados aqui, trabalha com empresa de publicidade da região. Isso tem um nome: preconceito”, afirmou (Ivan) Cavassani (publicitário e presidente da Associação Comercial e Industrial de São Caetano), lançando farpas também contra a Umesp (Universidade Metodista do Estado de São Paulo), que forma publicitários e, ao promover seminários de encerramento de curso, “só convida empresas de publicidade e propaganda de fora da região”.


 Trechos do Diário do Grande ABC de 4 de novembro de 1997, “Câmara do ABC assina acordos históricos”:


O Conselho Deliberativo da Câmara Regional do ABC assinou ontem os oito primeiros acordos considerados prioritários para o desenvolvimento socioeconômico da região. O presidente do Conselho, o governador Mário Covas, não compareceu ao evento. O secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, Emerson Kapaz, foi o orador mais incisivo do encontro: “Não estamos aqui para brincar, para aparecer em fotografia e ficar só nisso. Estamos aqui para resolver problemas”, afirmou.


“Os investidores estão recebendo um sinal muito claro: nós vamos resolver os problemas que eventualmente estejam ocorrendo na região”, reiterou.


 Trechos de matéria do Diário do Grande ABC de 26 de novembro de 1997, “Câmara planeja combate ao desemprego”:


A reunião de ontem da coordenação executiva da Câmara Regional do ABC, realizada no gabinete do prefeito de Santo André, Celso Daniel, definiu como prioridade número um a discussão sobre a manutenção e a geração de emprego. O assunto deve ser discutido na próxima segunda-feira, numa reunião com os integrantes da Câmara Regional e empresários da região.


O coordenador do Fórum da Cidadania do Grande ABC, Marcos Gonçalves, disse que estará promovendo debate desta proposta em reunião plenária do Fórum. Gonçalves reforça a tese de que é preciso haver uma articulação imediata, visando garantir a manutenção dos índices de emprego na região.


 Trechos de matéria do Diário do Grande ABC de 10 de dezembro de 1997, “Manifesto divide Câmara Regional do ABC”:


A Câmara Regional do ABC divulgou ontem uma carta contra a onda de desemprego na região. O documento afirma que o desemprego é o maior drama social da região e cobra participação de todos os setores para enfrentá-lo. A carta também faz críticas à atual política de juros do país. O governo do Estado, parte integrante da entidade, não assinou o documento e dividiu a Câmara.


De acordo com Armando Laganá, representante do governo do Estado, a carta faz críticas que não são procedentes. Uma delas, segundo ele, é o fato de o documento dizer que o governo federal “mistifica estatísticas” quanto ao número de desempregados.


Ele também afirmou que, diferentemente do que afirma o manifesto, o governo federal está preocupado com a questão do desemprego: “Discordamos dessa idéia de que o presidente Fernando Henrique Cardoso não está empenhado na geração e manutenção do emprego”.


Ontem, a executiva da entidade esteve reunida para apresentar propostas emergenciais contra o desemprego. As principais ausências foram os secretários Walter Barelli, das Relações do Trabalho, e Emerson Kapaz, da Ciência e Tecnologia.


 Trechos de matéria do Diário do Grande ABC de 5 de julho de 1998, “Câmara Regional do ABC é finalista em prêmio da FGV”:


O modelo de gestão da Câmara Regional do ABC garantiu classificação entre os 20 projetos finalistas do programa de Gestão Pública e Cidadania da FGV (Fundação Getúlio Vargas). O programa tem o objetivo de incentivar e promover o conhecimento de experiências alternativas na administração pública.


Segundo o presidente da Câmara Regional do ABC e do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, prefeito Maurício Soares, de São Bernardo, “é um reconhecimento, pela sociedade civil, de que o trabalho desenvolvido em conjunto com as sete prefeituras da região está dando certo”.


“Criamos canais de interlocução com os vários setores da sociedade e os governos municipais, estaduais e federal, o que até há pouco tempo era impensável”, destaca o coordenador do Fórum (Silvio Tadeu Pina) da Cidadania do Grande ABC.


O representante do governo do Estado na Câmara Regional, Armando Laganá, avalia que a classificação é merecida em função da ampla articulação que a Câmara desenvolve junto aos sete prefeitos da região e ao governo do Estado.


 Trecho de matéria do Diário do Grande ABC de 1º de setembro de 1998, “Assinatura dos 12 acordos consolida força da região”:


O governador de São Paulo em exercício, Geraldo Alckmin, participou ontem da cerimônia de assinatura de 12 acordos da Câmara Regional do ABC no anfiteatro da Faculdade de Direito de São Bernardo. “O Grande ABC deu um exemplo para o Brasil. Crise se resolve com união, com propostas alternativas. É isso que foi feito aqui”, disse o governador em exercício.


 Trecho de matéria de 3 de fevereiro de 1999 do Diário do Grande ABC, “Câmara do ABC inicia busca do necessário”:


A coordenadora executiva da Câmara Regional do ABC e prefeita de Ribeirão Pires, Maria Inês Soares, afirmou ontem que a entidade deixará de lutar pelo “possível” e passará a desenvolver ações em busca do que considerar “necessário” para a região. “Até agora o trabalho da Câmara ficou centralizado no que era possível fazer e não necessariamente no que era fundamental para o Grande ABC”, disse durante reunião extraordinária da executiva da Câmara.


Segundo a prefeita, o governo deixou a desejar no cumprimento dos acordos assinados em 1998: “Nem todos foram cumpridos adequadamente. Um exemplo são os piscinões, que estão com as obras atrasadas”.


 Trecho de matéria do Diário do Grande ABC de 12 de março de 1999, “Fiesp passa a integrar a Câmara Regional”:


O presidente da Fiesp, Horácio Lafer Piva, aceitou ontem fazer parte do Conselho Deliberativo da Câmara Regional do ABC e se comprometeu em apoiar o órgão em suas iniciativas para o desenvolvimento da região. Ao exaltar o papel da Câmara Regional, dizendo que a experiência deveria servir de modelo para as outras regiões do Estado, Piva se disse disposto a ajudar a cobrar o governo na liberação de recursos do Fundo de Aval para as pequenas indústrias. “Essas empresas estão sem crédito e não têm como competir. Vou colocar a Fiesp nessa luta”, garantiu.


 Trechos de matéria do Diário do Grande ABC de 31 de março de 1999, “Falta de resultados esvazia Câmara do ABC”:


Apesar dos avanços da Câmara Regional durante seus dois anos de existência, a demora para que os resultados práticos comecem a surgir criou um certo descrédito em alguns setores da sociedade civil da região. Esta foi a avaliação do coordenador do grupo Articulação Política do Fórum da Cidadania, Filipe dos Anjos Marques, que participou anteontem do primeiro workshop da Câmara Regional na gestão da prefeita de Ribeirão Pires, Maria Inês Soares, eleita no final de janeiro.


Na análise do coordenador do Fórum, houve um grande esvaziamento da sociedade civil em torno da Câmara Regional, fato demonstrado pela ausência de seus representantes no workshop. “As entidades mandaram seu recado, de que não basta integrar, mas sim participar e não ser massa de manobra”, afirmou. Na sua opinião, a ausência do primeiro escalão de Covas pode comprometer a atuação futura da Câmara.


 Trechos do editorial do Diário do Grande ABC de 5 de agosto de 1999, “Plano de vôo”:


A dinâmica de trabalho da reunião do Conselho Deliberativo da Câmara Regional do ABC, realizada na segunda-feira passada em São Bernardo, mostrou mais uma vez — como se ainda fosse preciso ter mais provas — o notável grau de consenso de lideranças expressivas da região e do próprio governo do Estado a respeito dos rumos do Grande ABC.


O texto final sobre o cenário futuro desejado para os próximos 10 anos e as sete prioridades básicas para viabilizar tal cenário (os chamados eixos estruturantes) será consolidado nos próximos dias e apresentado ao debate público. O objetivo comum é a transformação do Grande ABC numa das regiões mais prósperas, modernas e socialmente mais bem estruturadas do país. Num caso que se quer exemplar de reconversão econômica bem-sucedida.


O Grande ABC cruza o limiar do novo século dispondo de uma ferramenta básica — um plano de desenvolvimento urbano e econômico capaz de orientar as gerações futuras e corrigir nos próximos anos os erros e equívocos que tanto o atormentaram nas últimas décadas.


 Trechos da Reportagem de Capa da revista LIVRE MERCADO de dezembro de 1999, “Fogo cruzado na integração”:


Lançar um produto que desvende a indústria de móveis do Grande ABC pelas lentes de um design respeitado e próspero figura entre as 10 ações prioritárias sobre as quais se debruça o setor moveleiro da região desde que, há dois anos, decidiu resgatar para valer a saudosa fama de um dos maiores pólos produtores do País. Uma tremenda tempestade pode estar se armando no horizonte, entretanto, com a iniciativa de São Bernardo sair à frente e lançar a marca SBC Design.


Ao que parece, o momento mágico da propalada soma de esforços dos municípios da região começa a fazer água. Todos sempre jogaram o baralho da integração com as cartas no peito, escondendo intenções individuais escamoteadas.


Por trás de todas as disputas, não há como negar, há a decomposição das receitas públicas provocada pelas perdas de arrecadação com a fuga em massa de empresas do Grande ABC e com a funda reestruturação e enxugamento das que ficaram, para fazer frente à competitividade imposta pela globalização. O emagrecimento dos orçamentos municipais está mordendo na jugular dos prefeitos, daí a política do salve-se quem puder na atração de capitais privados e na mobilização de estratégias individuais.


 Trechos do artigo de Glauco Arbix, professor do Departamento de Sociologia da USP, publicado na Folha de S. Paulo de 18 de dezembro de 1999 com o título “Um laboratório institucional”:


Em nossa curta história industrial, não foram poucas as regiões que acabaram se transformando em conglomerados de cidades desorientadas, hostis aos seus habitantes, onde a baixa qualidade de vida e a ocupação urbana caótica passaram a ser marca registrada. O triste mosaico de regiões como o ABC ou Betim é exemplo vivo dessa realidade, que contrasta com os altos índices de arrecadação fiscal.


Há, no entanto, sinais de reação. Mais uma vez, o ABC salta na frente, ainda que nem sempre tenha recebido o devido reconhecimento. Para se defender da disputa predatória e tentar reverter seu declínio industrial, as sociedades locais deflagraram uma série de iniciativas multipartidárias, de cooperação entre o setor público e o privado, que estão fazendo o ABC um dos mais importantes laboratórios produtores de novas institucionalidades do país.


A Câmara Regional é uma de suas expressões mais vivas. Seu funcionamento obedece aos padrões democráticos de convivência e representa um enorme avanço no sentido de superar o planejamento concentrado nos gabinetes de iluminados prefeitos, governos e no staff das agências estatais.


 Trecho de matéria do Diário do Grande ABC de 3 de novembro de 2002 sob o título “Câmara tem 8 acordos cumpridos”:


Dos 52 acordos assinados entre o governo do Estado e a Câmara Regional em 1997, 1998, 2000 e 2002, apenas oito foram concluídos e retirados da pauta até agora, segundo estudo apresentado nesta semana pelo Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. Cada acordo representa medidas efetivas para resolver problemas sociais e econômicos da região, com aplicação de recursos ou simplesmente com a eliminação de barreiras institucionais.


Sete anos depois de constituída sob os efeitos pirotécnicos de triunfalismo econômico, politiquismo partidário e ilusionismo integracionista, a Câmara Regional do ABC é um dos maiores blefes institucionais da história regional. Só pode ser comparável, por isso, ao Fórum da Cidadania do Grande ABC. A cronologia dos noticiários inseridos neste livro é um fragmento da montanha de espumas de propostas que não resistiram aos fatos.


Provavelmente com o fracasso da Câmara Regional, o Grande ABC perdeu a maior oportunidade da história para costurar, de fato, um tratado que o transformasse numa unidade institucional com amplos avanços sociais e econômicos. O ambiente que se criou em torno da Câmara Regional era mais que justificado para se aguardar resultados extraordinários.


É mais que provável que não exista símbolo maior do estrondoso fracasso da Câmara Regional do que o paralelismo de promessas e desvarios e o mais inquietante e acovardado processo de esvaziamento econômico que uma região já conheceu no País: o Grande ABC de 1997 a 2002 acumulou série de perdas econômicas que o remete entre a cruz do desemprego crônico e estrutural e a caldeirinha da absoluta ausência de projeto econômico estratégico.


O errático desempenho da Câmara Regional, em que pese toda a boa vontade de parte da mídia em amenizar os tropeços, está nas contradições de vários de seus membros. Dependendo dos interesses dos interlocutores, tanto a Câmara do ABC poderia estar perto do paraíso como à beira do inferno. O lamentável é que a segunda versão acabou se consolidando gradualmente. Antes de completar seu sétimo aniversário de criação, a Câmara Regional é um cadáver insepulto. Como há agentes sociais, econômicos e políticos no Grande ABC que cultivam mistificações para proveito próprio, não é de todo improvável que tenham a ousadia de programar festejos da iniciativa que parecia, finalmente, incrementar as relações entre a comunidade regional e o governo estadual.


Os elevados investimentos das montadoras de veículos e de autopeças que restaram no parque industrial do Grande ABC não têm qualquer relação com as declarações do então vice-presidente da Anfavea Mauro Marcondes Machado. Os recursos para modernizar plantas industriais, processos e qualificação de mão-de-obra foram resultado de decisões estratégicas que ultrapassam — como sempre — a geografia regional. Foram medidas de competitividade internacional as quais o parque automotivo da região teve de recorrer para se sustentar num quadro de descentralização produtiva em direção aos mais variados Estados da Federação.


Nenhuma política específica para o Grande ABC proteger-se economicamente a bordo da globalização foi deflagrada por qualquer instância governamental. Por isso a agudeza das perdas econômicas ainda não chegou ao fundo do poço.


O consenso em torno de um plano estratégico para o Grande ABC não saiu do papel durante todo esse período e nem mesmo pode ser catalogado seguramente como importante antídoto à frouxidão econômica. Os diagnósticos que resultaram dos encontros apresentaram viés excessivamente burocrático e estatal. Os grupos de técnicos e representantes da sociedade que se debruçaram em busca de soluções regionais no período inicial da Câmara Regional tinham em larga escala relações com as prefeituras.


Jamais foi corrigido o contra-senso de bloquear ou pelo menos não se lembrar de agentes da iniciativa privada especialistas em regionalidade para focar o plano estratégico sob ângulo de competitividade regional no sentido econômico da expressão. Não teria sido mais que sensato juntar especialistas do Poder Público e da livre iniciativa para desenhar um Grande ABC do futuro que não fosse nem romântico nem pragmático demais? Enfim, o que se poderia extrair da associação dessas duas metades da laranja desenvolvimentista seria um caldo de conhecimentos específicos que se tornariam mútuos e imantados de possibilidades de sucesso.


Mesmo sob estrutura técnico-operacional quasímoda, a Câmara Regional do ABC poderia ter tido melhor papel na inserção do Grande ABC na globalização desmedida do governo Fernando Henrique Cardoso se contasse com o aparato político-institucional desejado. Sempre foram tortuosas as relações entre governos municipais, sociedade e governo estadual de frondosas e estanques ramificações em forma de secretarias. Exceto nos raros encontros em que o Conselho Deliberativo da entidade se reunia com pompa e circunstância — vendendo uma unidade cuja solidez fazia concorrência à seriedade das estatísticas policiais –, a operacionalidade das questões mergulhava nas águas turvas de idiossincrasias partidárias.


A ignorância com relação à realidade factual do Grande ABC se misturava com a deliberada disposição de esconder sob o tapete de falsos números econômicos uma região já em processo de atomização produtiva. O enunciado, em 1997, de que o Grande ABC não passava por problemas semelhantes aos de tradicionais centros econômicos da Europa onde indústrias fecharam as portas e mudaram de endereço, soava como frase típica de Casseta & Planeta.


A toada de fragilização econômica que se iniciou especificamente em Santo André e São Caetano na metade dos anos 70 e colheu os demais municípios locais a partir da segunda metade dos anos 80 não poderia permitir tamanhas sandices. Mas em 1995 e 1996, sob efeito do Plano Real, o Grande ABC recuperava pontualmente parte das perdas de participação da geração de riqueza no Estado de São Paulo. Foi o suficiente para os trombeteadores da fortaleza inviolável fazerem estardalhaço.


Esqueceram esses plantonistas da alegria efêmera que os artificialismos do Plano Real não resistiriam às cobranças de reformas estruturais que o governo Fernando Henrique Cardoso protelou ano após ano e à volúpia do sistema financeiro internacional. Mais que isso: perderam a percepção de que jamais em toda a história da indústria nacional houve tanta disputa por investimentos como nos anos 90. A guerra fiscal, sob vistas grossas do governo federal, passou a repactuar critérios de competitividade. Assim, endereços mais antigos e de conquistas trabalhistas mais pronunciadas ingressaram na lista de indesejáveis.


O sarcasmo dos arautos da felicidade circunstancial chegava ao requinte de disfarçar o estado latente de depauperação da qualidade de vida no Grande ABC. Usavam frases de efeito quando a própria criação da Câmara Regional do ABC consagrava o estado de emergência já latente.


Entre as desavergonhadas posições analíticas de documentos oficiais da Câmara Regional constava a negação do esvaziamento e o endeusamento dos investimentos do setor terciário. A chegada de grandes conglomerados comerciais à região, numa sequência tão avassaladora quanto arrasadora, foi a extrema unção dos pequenos negócios.


Brincou-se até mesmo com a situação do desemprego já ostensivamente impressionante em 1997, sobrevalorizando-se o que equivocadamente as lideranças sindicais — e depois outros setores da sociedade, todos dispostos a mimetizar o politicamente correto — alardeavam como mão-de-obra qualificada da região. Como se fosse possível fazer carroças com gente tecnologicamente qualificada, o Grande ABC viveu a ilusão de que tinha operários de ponta. Eram simplesmente especialistas em apertar os parafusos de então.


A abertura econômica e sobretudo a aplicação do Plano Real em 1994, combinado com a chegada de novas empresas do setor de montadoras e autopeças, recolocaram a verdade no devido lugar: cultura de mão-de-obra industrial é uma coisa, qualidade dessa mesma mão-de-obra é outra. O Grande ABC contava exponencialmente com a primeira, mas estava na periferia da qualificação num confronto mundializado, que é o que imperava nas avaliações de custo/benefício das empresas.


Tanto estava na era da pedra lascada em matéria de habilitação manufatureira que o Grande ABC dos últimos sete anos viveu extraordinária revolução no chão de fábricas. Novas metodologias, novas tecnologias, novos processos, tudo se tornou novo. Milhares de horas de treinamento e reciclagem envolveram operários e gerentes que conseguiram escapar da degola. Só nos anos 90 nada menos que 100 mil empregos industriais com carteira assinada foram decepados. Uma parte, apenas uma parte, encontrou espaço nas autopeças. Outra parte bandeou-se para a fermentação de pequenos negócios industriais e, em maior escala, do terciário. A maioria ficou desempregada.


Quem perdeu emprego industrial no Grande ABC nos anos 90, sobremodo no epicentro das mudanças entre 1994 a 1999, dificilmente conseguiu recolocação nas montadoras e nas autopeças, coração da economia regional. Os apertadores de parafuso do passado, como se designavam os trabalhadores que atuavam como peças fixas nas linhas de produção, só se tornaram especialistas em funções múltiplas se não entraram na lista de demissões. Nem de longe a compactação do quadro de trabalhadores lembra o efeito sanfona de tempos de mercado fechado, quando a redução se dava por causa da sazonalidade de uma crise macroeconômica que, superada, permitia a recontratação dos demitidos. O que se verifica na atividade industrial, especialmente na área automotiva, são demissões a rodo; ou seja, são medidas que enxugam departamentos gerenciais e cortam divisões operacionais.


Outra balela vendida como projeto foram os supostos financiamento às micros e pequenas empresas. Nada mais falso. Exceto os raros casos em que o BNDES conseguia ser acionado pelos próprios empreendedores, sem intermediação da institucionalidade regional, o que se praticou no Grande ABC durante todo esse período — como nos anteriores — foi o jogo bruto de Golias contra Davi. A diferença é que, contrariamente à passagem bíblica, na vida real Golias é praticamente imbatível.


Pressionadas por falta de escala, pela obsolescência, pelos novos parâmetros de custos definidos pelos clientes de grande porte, pela falta de capital de giro, pela extorsiva e crescente carga tributária, pelas próprias limitações gerenciais, entre tantos e tantos problemas, as pequenas e médias indústrias do Grande ABC viraram estatística de deserção, de falência ou de absorção pelo capital estrangeiro.


O caminho sem volta alardeado em tom de esperança pelo governador Mário Covas em julho de 1997 se reveste de uma premonição, até prova em contrário, do avesso do intentado. O Grande ABC daquele ano — em que algumas frases de inquietação apareciam entre as cataratas de proselitismo — estava social e economicamente menos entregue às baratas do que neste 2003. As sucessivas perdas de participação absoluta e relativa numa economia estadual que também perde vigor frente a concorrentes do País e o contexto de um País que nem de longe vive a euforia do Plano Real indicam luzes vermelhas na pista de decolagem.


Poucos dias depois das declarações de Mário Covas, o então coordenador do Fórum da Cidadania, Marcos Gonçalves, num rasgo de franqueza e realismo, parecia adivinhar o que viria no mapa astral da Câmara Regional. Ao alinhar as contradições do projeto de consenso que opunham interesses distintos e conflitantes de importantes instituições que dividiam os assentos da Câmara Regional, Marcos Gonçalves quebrava um ambiente de oba-oba oficial. Se tivesse tido a mesma independência e sensibilidade na avaliação do próprio Fórum da Cidadania do Grande ABC, que também comandou, seria possível abortar o trajeto em direção a um obstáculo só aparentemente insuperável — a ilusão de que palavras podem substituir ações.


Nem ilusionismo nem marketing pelo marketing, como ficou provado. Por melhor que seja o quadro de especialistas em marketing no Grande ABC — e há profissionais capazes de participar de grupos multilaterais –, também nada resiste à simples exposição de enunciados. A importância de vender um Grande ABC diferente do que se apresenta como realidade é uma velha e surrada fórmula de colocar o carro à frente dos bois.


No mínimo, o que se pretende como ferramenta de valorização de um determinado ambiente urbano é que haja a mensuração cuidadosa de pontos positivos e negativos para que as atividades que se seguirem não caiam no buraco profundo do sensacionalismo sem responsabilidade. À falta de um grupo de especialistas em diagnosticar a imagem interna e externa do Grande ABC e, em seguida, encetar planejamento, propostas e ações para ampliar os fatos positivos e metralhar os fatos negativos, o que se fez foi um teatro de operações de amadores.


Sim, substituíram-se os marqueteiros de profissão por agentes econômicos, sociais e políticos submetidos à lógica transversa de que, supostamente com credibilidade no mercado de informações, tudo que dissessem seria automaticamente solidificado como verdade. O que importava nessa segunda metade da década dos anos 90 no Grande ABC era combinar frases de efeito com profusão de propostas de desenvolvimento econômico sustentado. Pouco se lixavam para a simetria entre promessas e realizações.


Para acentuar ainda mais o clima de grandiloquência, uma antiga deformação congênita da sociedade regional passou a atacar intensamente os agentes envolvidos: o Complexo de Gata Borralheira. Sim, era indispensável que se mostrasse internamente que o Grande ABC estava unido e externamente que a vizinha e sempre mais glamourosa Capital admirasse essas plagas como exemplo a ser seguido. Chegou-se, com isso, ao paroxismo do gataborralheirismo com as consequências inevitáveis: postergou-se uma série de medidas de caráter emergencial em nome de torrenciais elucubrações verbais.


O estabelecimento da questão do desemprego como prioridade número um do Grande ABC, em 1997, já denunciava uma realidade latente que discursos ambíguos negavam. Medidas paliativas não faltaram para amenizar o quadro, como os cursos de reciclagem e de recolocação profissionais. Muito pouco diante das fundas transformações que ocorreram ao longo da década e continuam a ocorrer no Grande ABC. O que está comprometido no cenário regional não é o efeito do desemprego epidêmico, mas a estrutura econômica excessivamente dependente do setor automotivo. O que gerou desenvolvimento e qualidade de vida no passado acabou se transformando em pesadelo.


O prêmio da Fundação Getúlio Vargas conquistado pela Câmara Regional do ABC exibe a vulnerabilidade de determinados programas que pretendem valorizar ações voltadas à cidadania. Ficou evidenciada a pressa em condecorar uma ação de integração regional combinada com aproximação do governo do Estado. Bastava uma atenta leitura das idas e vindas do noticiário da Câmara Regional para flagrar a flacidez das relações de diferentes agentes políticos, empresariais e sociais. A premiação revelou, pelo menos, uma competência regional: é possível ultrapassar o cerco discriminatório à Gata Borralheira. Basta que se comporte como Cinderela. Mesmo que tudo não passe de prestidigitação.


Oito meses depois da notícia da premiação da Fundação Getúlio Vargas, a prefeita de Ribeirão Pires, Maria Inês Soares, agora coordenadora-geral da Câmara Regional, vazava oficialmente o desencanto com o desempenho da entidade. Ao fazer pregação pelo “necessário” em vez do “possível”, Maria Inês recorria a uma tática suavizadora do desencanto que já cercava muitos dos integrantes da Câmara Regional: os resultados não apareciam na profusão das propostas e os problemas sociais e econômicos, sempre escanteados, afetavam mais e mais a vida da população regional, com subidas permanentes dos índices de desemprego e de criminalidade.


Pouco mais de um mês de Maria Inês entregar a rapadura de que a Câmara não era uma Brastemp, um novo factóide ajudava a confundir o quadro: o anúncio do reforço da Fiesp de Horácio Lafer Piva. Há quatro anos a entidade piramidal da Avenida Paulista integra o Conselho Deliberativo da Câmara Regional, mas Piva jamais participou, nesse período, de uma única reunião da instância. Não se deve execrá-lo, porque apenas poucos dos membros efetivamente se apresentam nesses encontros.


Antes que março de 1997 de adesão de Horácio Lafer Piva terminasse, o polêmico Filipe dos Anjos Marques, então presidente da Associação Comercial e Industrial de Diadema e integrante do Fórum da Cidadania, empunhava o facão da quebra de protocolo e traduzia numa linguagem bem mais incisiva e pouco cerimoniosa do que Maria Inês Soares o conceito que a Câmara Regional lhe impregnava. Disse com todas as letras uma palavra que começava a aterrorizar lideranças da Câmara Regional: descrédito. Havia muito tempo a chamada sociedade civil afastava-se da Câmara Regional, mas ninguém se apresentou com independência para denunciar.


Cinco meses depois, editorial do Diário do Grande ABC procurou atenuar os estragos de Filipe dos Anjos Marques com louvação ao futuro do Grande ABC baseada nas propostas da Câmara Regional. O jornal não estava sozinho na tentativa de salvamento. O artigo do especialista em indústria automobilística Glauco Arbix, na Folha de S. Paulo, também infiltrou nas veredas do otimismo, mas provavelmente por motivo diferente: o professor da USP conhecia e conhece o dia-a-dia do Grande ABC apenas por ouvir falar e por eventuais encontros com acadêmicos e sindicalistas aos quais nem sempre interessa comentar tropeços institucionais e corporativos.


A matéria que complementa essa rápida historiografia da Câmara Regional, publicada pelo Diário do Grande ABC no final de 2002, é o coroamento dos descaminhos e um encontro das águas da verdade que diferentes corporações fizeram das tripas coração para negar: a Câmara Regional foi um passatempo ficcional que jamais esteve à altura da intrincadíssima realidade regional. Mais que isso: na medida em que surgiu no cenário institucional da região como salvação de lavoura e ganhou sobrevida de mistificações, mais atrapalhou do que contribuiu para a reação que tanto se exige de um território bombardeado pelas dessídias do governo federal, pelo faz-de-conta do governo estadual e também pela pouca apetência econômica dos governos municipais.


O desmascaramento da Câmara Regional é, acima de tudo, uma iniciativa que pode recolocar o Grande ABC no ringue da competitividade regional, onde a luta é intensa, sangrenta, mas muito melhor que simplesmente estar estatelado fora do ringue, como está de fato hoje.


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